quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

O rio

Na sala de espera, tudo se espera e o tempo perde-se no tempo, o tempo... esse criminoso de olhos amendoados e de bigode esticadinho. Homem pançudo que percorre a aldeia serrana, de lés a lés, com uma carrinha de venda ambulante. "Quem quer comprar a melhor banha da cobra?", apregoa em todos os recantos, todos os buracos e todos os caminhos, mesmo aqueles que indo ter a algum lugar, não vão ter a lugar algum. Na bagagem o de sempre: sonhos, emoções e pedaços de companhia traduzidos em dois, três ou mesmo quatro dedos de conversa, nessa vontade de beber o elixir, de não envelhecer prematuramente.. 
Um pouco abaixo nasce um rio, que entre murmúrios e gargarejos, vai toldando a paisagem, estendendo-se pelas pedras vestidas de algas e musgo. De tempos a tempos, um Achigã (peixe do rio) rende-se às suas caricias, deixando-se levar pelo embalo da corrente. Um pouco mais a sul é a vez de uma tonalidade castanha, se misturar com a limpidez dos seus olhos, turvando-lhe o pensamento com pensamentos de saudade. Voltar para o lugar onde nasceu, é a primeira ideia que lhe vem à ideia, mas no regresso apercebe-se que já não é o mesmo. A sinuosidade do seu corpo deu lugar a um leito mais largo, de margens que transbordam para várias margens e não há margem para isso. 
Não é da idade, não é do tempo, mas é o tempo que o levou à passagem do tempo, onde a idade não importa, pelo menos enquanto a água continuar a nascer e a corrente a passar.
Foto: Catirolas

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Considerações a considerar

Estou perto, a falta de distância não me afecta. Não procuro ajuda externa, tento encontrar muita força interna. Não tenho mau feitio, apenas um feitio que não foi feito para todos. Raramente leio o horóscopo quando procuro algum conselho, a não ser que queira exactamente um, que sei que não irei cumprir. Não preciso de fazer dieta, basta ignorar algumas pessoas que me fazem perder peso só de olhar. Não importa se sou ou não profissional, o que interessa é o quanto profissional me possam pagar e esse pagamento cair de forma profissional, a tempo e horas na minha conta bancária. Não quero saber do que estou habilitada a fazer, sou afilhada e madrinha ao mesmo tempo, do tio, que é primo de alguém que não conheço, mas que como chegou mais cedo, ocupou um lugar, que não interessa, mas que todos querem reclamar. Inúmeras vezes canto, sem saber cantar: "Oh! Rosa, vá lá, arredonda a saia", apesar de 90% do meu vestuário se resumir a calças de ganga, sem partes do corpo à mostra, mas com muita vontade de o mostrar, em suma, sem suar, muitas considerações a não considerar, ou não fosse a vida esse lugar estranho, onde gostamos tanto de estar e de não estar.

Foto: Catirolas

domingo, 20 de janeiro de 2019

Dizer o que não se diz

Levantei-me com as galinhas, levanto-me sempre com as galinhas só não as oiço cacarejar. Lá fora o frio, de rachar, confunde-se com a neblina e o fumo das lareiras, que não sobe e se mantém quase instantaneamente por cima do teu cabelo, encharcado, abafando toda a fragrância de framboesa, com que o lavaste e isso faz-me recordar a melhor altura do ano, a primavera. 
No percurso que faço até ao local onde pretendo ir, os pensamentos tomam conta de mim, depois dos sentimentos já o terem feito, vezes e vezes sem conta, mas apesar de escrever na primeira pessoa, este eu na verdade não o sou. Um eu, que só posso revelar a mim próprio não vá a escrita trair-me o coração e as palavras fazerem greve de excesso de zelo, começando a escrever tudo o que desejo, mas não quero. 
A passagem para a outra margem , não se dá de barco, nem a nado, muito menos a pé ou de carro, simplesmente não acontece, pois, quer se admita ou não, entre a razão e o coração há um caminho intransitável por onde só as galinhas podem passar, mas as galinhas não sabem que o podem fazer. E eu, nesse meu mundo onde só o sol, tem possibilidade de me acender todos os dias, é a falta de luz que tem aparecido, essa escuridão que me tem lambido as pernas, de tal forma que já não há surpresas que me atirem ao chão. Sei que é uma imagem terrível, um sentimento destrutivo, por vezes dilacerante, esperar sempre e acertar com essa esperança, mas acreditem ou não, apesar de ser uma imagem triste, não deixa de ser uma solidão com muita utilidade.

Foto: Catirolas

quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

Entrelinhas

Sei que demorei muito até voltar aqui. Na minha cabeça vários temas, muitas emoções. Nem sempre posso escrever directamente o que penso, ou o que sinto, por vezes tenho mesmo que usar meias palavras, significados contrários. Tenho que ser uma actora no meu próprio texto, mesmo tendo a certeza, de que quem me conhece verdadeiramente, me consegue ler nas entrelinhas.
Mas desta vez vou ser directa.
O que mais me apaixona naquilo que faço é, para além de ouvir as pessoas, ter oportunidade de contar as suas histórias, mesmo que grande parte das vezes isso me afecte, pois, apesar de o disfarçar, de esconder uma lágrima por detrás de um sorriso, não consigo desligar. Para o bem e para o mal, como é óbvio. Não tendo a certeza se isso me faz uma pessoa melhor, ou pior, mas faz-me seguramente ser uma pessoa diferente, que não consegue ser indiferente. 
Foto: Catirolas

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