quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Memórias

A manhã acordara nebulosa e fria. No horizonte, o nevoeiro, ou o fumo, que fumegava das chaminés e que por causa do frio não subia, deixava a descoberto, as fragilidades do cume desse monte, nessa terra bonita demais para não se falar nela. 
Ás seis da manhã, a telefonia com o som muito alto, ia debitando as noticias matutinas, intercaladas por algumas vozes bem conhecidas do fado português. António levanta-se da sua cama de ferro, que herdou da sogra, bem como o colchão de palha, veste as calças remendadas e a camisola quentinha, calça os sapatos gastos e cheios de terra e sai para o quintal. Helena vai logo a seguir, mas não sem antes levar o penico de esmalte e o despejar na sarjeta. 
Na cozinha, feita com barro vermelho, põe umas cavacas ao lume, a cafeteira mascarrada em cima de um tripé e faz o café. A água que sai da torneira, custa a sair, parece congelada nos canos. Congelada, está também a saudade que ficou num balde na rua. 
António abre o curral das cabras e num assobio, as vai conduzindo pelas sinuosidades do terreno, uma ribanceira que termina no rio. 
Absorvendo as emoções daquele lugar, Maria levanta-se também. Ainda de pijama vai ter com Helena, procura uma tigela, corta um pedaço de broa, que Helena amassou na semana passada, mas que parece ter sido ontem, e mete dentro da tigela, despejando por cima, o café acabado de fazer.  Helena não consegue estar calada, Maria não consegue parar de lhe perguntar coisas; larachas, dizeres, lengalengas, histórias verdadeiras, outras menos verdadeiras, mas em que ambas acreditam. Laços e cumplicidade. Não há pequeno almoço melhor.
António chega entretanto, Helena prepara-lhe o pequeno almoço e serve-lho, António está sempre a ralhar, não diz uma palavra simpática, não tem um gesto de carinho. António, é um homem  bonito, de olhos azuis muito expressivos. Não fosse a vida austera, o trabalho duro e as dificuldades de vida, tudo teria sido diferente. Os filhos, menos de uma dúzia, mas mais de meia dúzia, depressa largaram a escola, para ajudar a casa, mas agora também eles já seguiram suas vidas, restando apenas as visitas nas férias, nos feriados, nas épocas festivas. Isso não parece deixá-lo mais feliz. 
Antes do almoço ainda há tanto para fazer: lenha para rachar, ovos para tirar das galinhas, couves para plantar, feijão verde para mondar, porcos e cabritos para alimentar. 
Sentado no banco de madeira António acaba o pequeno almoço e lê, sem saber ler ou escrever, as noticias do velho jornal. Maria mete-se com ele, mas só consegue ouvir ralhetes, palavras duras e má disposição. Ainda de pijama, Maria abraça António com todo o carinho que carrega no coração. Apesar da resistência e da rabugice, António esboça um sorriso e deixa-se ficar nesse abraço... afinal tudo o que é preciso é não deixar de acreditar. Helena sorri também com o episódio.

Foto: Catirolas

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