quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Noite infernal

Foi numa noite infernal, escaldante, ardente de verão. O ar abafado convidava a uma saídas nocturnas, a umas escapadelas boémias, pelos caminhos do pecado e do prazer, contrariando o tédio da azáfama, que é o dia-a-dia. O bar do costume estava como habitualmente, apinhado de gente. O ambiente não podia ser mais agradável. Conversava-se de tudo, ouvia-se música e, claro, bebia-se muito, desde os mais exóticos cocktails até à tradicional imperial. Uns quantos copos depois, o espírito estava mais solto, mais descontraído, e a embriaguez conduzia à desinibição. Do outro lado do bar, encontravam-se uns deslumbrantes olhos castanhos, uns longos e lustrosos caracóis e umas pernas espectaculares. Enfim, uma rapariga repleta de beleza e sensualidade. Sem conseguir resistir aquela magia, um jovem aproximou-se dela. Um cigarro na boca, dois dedos de conversa e um pequeno beijo nos lábios foram os primeiros passos. Depois, as mãos entrelaçaram-se e saíram do bar, em direcção ao carro estacionado numa rua deserta. Sentados no banco de trás, começaram por se beijar. Primeiro devagar, depois cada vez mais famintos, sofregamente. As mãos, excitadas, não paravam quietas. O coração pulsava cada vez mais depressa. Os seios pareciam querer saltar para fora da blusa desabotoada. O prazer do momento contagiava e aquecia o ambiente, embaciando os vidros do carro. Minutos mais tarde, desfalecem cansados no banco de trás. As faces rubras, os olhos brilhantes, os cabelos despenteados, os corpos nus e as almas sorridentes, traduziam uma vontade de voltar a repetir tudo, outro dia qualquer.
Amor?Não! Era apenas sexo, sexo bom. E a protecção? O preservativo? Não tinha sido utilizado! Estava algures, inviolável no bolso das calças. Aconteceu tudo tão rapidamente que nem houve oportunidade.
Alguns meses depois, numa noite  infernal, fria, gelada de inverno, o ar, impregnado por partículas de pó, tinha um sabor amargo e o cheiro da morte. Na cama do hospital, um jovem pálido, doente, com os olhos rasos de água, recordava com certa dificuldade, aquele maldito episódio. Ela era boa, bonita, sensual, um autentico demónio de saias, o seu verdadeiro carrasco. Não sabia o seu nome, nunca soube. Na verdade já não sabia mais nada, perdera os amigos, a família, o trabalho, a dignidade, o respeito e até a esperança. Restava-lhe apenas a sombra negra da resignação e da revolta, por tudo o que o destino lhe traçara. "Se ao menos...", lamentava-se. Mas agora era tarde demais, a racionalidade desvanecera-se, a vida fugia-lhe das mãos. De tudo o que tinha, e que subitamente perdera, restava-lhe apenas a certeza de uma coisa, daquela maldita placa pendurada na porta do quarto, como uma corda pendurada ao seu pescoço, a anunciar: "sida. Doente em fase terminal".

Agosto de 1997.

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