domingo, 4 de março de 2018

Louvor

Eram seis da manhã quando o despertador, demasiado violento, mas ainda assim bastante eficiente, fez o seu trabalho. Despertou!
Alice levantou-se, tomou banho, vestiu-se, preparou a marmita para o seu Tomé levar para o trabalho, uma receita da sua avó angolana, Moamba de Peixe. Vestiu as crianças e saiu para o trabalho. Um edifício de dez andares no centro de Lisboa.
Depressa Alice e a sua colega de trabalho, Margarida, picam o ponto, pegam nos baldes, na esfregona no pano de pó e varrem, despejam o lixo. Limpam o espaço. Perto das nove da manhã começam a chegar os "fatos", como as duas mulheres de 40 anos, lhes chamam. Para eles, elas são invisíveis. Não existe um sorriso, um bom dia, nem sequer um obrigado, a não ser quando é preciso limpar o café que alguém entornou, ou despejar um caixote de lixo. "Se ao menos aquelas pretas fizessem o seu trabalho", ouviram no outro dia alguém comentar, queixando-se do nada que havia para queixar. Alice ganha três euros à hora e trabalha no turno da manhã, que termina perto da uma da tarde.
Antes de ter tempo de engolir a sandes que carrega na sacola, vai a correr para outro trabalho, umas horas que faz na casa de uma ministra, "um terceiro andar muito chique, em Campo de Ourique", diz com emoção, por gostarem tanto do seu trabalho. Apesar de ter a quarta classe também ela se considera uma ministra, a ministra das limpezas.
É já perto das sete da tarde que regressa a casa. Filhos para tratar, roupas para lavar, jantares e almoços para preparar. O tempo passa a correr e antes de ver a sua novela favorita adormece no sofá. É o barulho do Tomé que a acorda, o marido chega finalmente a casa. O cheiro a álcool e a tabaco lembram Alice que hoje foi noite de voltar a sair com os amigos, ou para os braços da amante. Um hoje, de todos os dias. E ela que esteve ali à sua espera acabou por nem jantar...Enquanto ele foi desmaiar para a cama extremamente alcoolizado, ela deixou-se ficar ali um pouco mais, sozinha no sofá. Gostava da quietude, do silêncio daquele momento que anunciava o fim de mais um dia.... a novela estava quase a terminar.

Trazer o amor às pessoas, aquilo que se dá, é que nos diferencia.


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