domingo, 21 de outubro de 2018

A troca

Como todos os dias, naquela alvorada de junho, uma mulher apeou-se junto ao cais do Sodré e, sem temer a ausência de uma companhia, rodou marginal fora rumo ao bairro da Sé; suja, desbotada, vagueando por essa cidade bonita acordada para o rio Tejo numa posse imponente como se estivesse dizendo "cheguei primeiro".
Um pouco mais adiante sentou-se com a mochila de trapos na escada de um prédio, esperando (por um sonho de cavalos alados e princesas andantes, de sóis e guaritas de flores, por um braço de ouro receptivo ao acolhimento de quem não deseja estar eternamente só). Permanecia ali diariamente há alguns dias, meses ou anos, assim, livre dessa forma como só como uma pedra consegue ser, se é que as pedras são livres.
Muitas vezes, cruzando-me com ela pelo caminho, indagava-me acerca daquela permanência e pelos porquês da sua vida. Talvez por cansaço, apenas pela intimidade de um solo subjugado à sua condição, certamente pela incerteza de procurar um lugar, sem saber qual, sem saber onde pertencer, a que luz, a que chão. Somente ao profícuo arroteamento de uma cave escura, sombria, que já foi outrora um palácio de duquesas, misturada com um saber agarrado às letras e às ciências, dessas que só a vida ensina, porque os livros se desactualizaram com a politica de melhoramentos públicos.
Distante de toda aquela realidade, o céu filtrava uma pureza extrema e a estrela do Norte pontuava ainda como sendo a melhor companhia. O silêncio! Fino, manso, triste não escondia a fome, mas aumentava o frio atento ao coração da terra e ao seu sorriso. As estrelas dançando no céu, faziam escorregar um desejo de escutar qualquer coisa. Nos olhos grandes, azuis e escondidos por detrás desse rosto marcado pelas peculiaridades da vida, grossas lágrimas rolavam e caiam no chão duro e árido, como se quisessem comunicar, transmitir o que o coração sentia e a alma não transparecia.
Por momentos desejei fazer algo, mas o meu egoísmo, a minha indiferença foram sempre maiores e mais precisos. Até que um dia, "há sempre um dia", desses em que o calor manda e desmanda do asfalto do mundo, enquanto me arrastava pelas ruas zaragateiras da baixa pombalina, dei por mim em frente à tal mulher que tanta curiosidade me despertava. Olhei-a nos olhos, estendi-lhe as mãos e dirigi-lhe umas palavras.
Ela observou-me com um sorriso febril de alma liberta antes de proferir umas palavras que, apesar de inesquecíveis, jamais conseguirei voltar a lembrar. O que se passou de seguida não sei explicar muito bem. Apenas me recordo daquela alvorada de junho, uma mulher apear-se junto ao cais do Sodré, e sem temer a ausência de uma companhia, rodar, marginal fora, rumo ao bairro da Sé; suja, desbotada, vagueando por essa cidade bonita acordada para o rio Tejo numa pose imponente, como se tivesse dizendo "cheguei primeiro", e de insolitamente me aperceber que essa mulher era eu.
Foto: Catirolas


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