domingo, 20 de janeiro de 2019

Dizer o que não se diz

Levantei-me com as galinhas, levanto-me sempre com as galinhas só não as oiço cacarejar. Lá fora o frio, de rachar, confunde-se com a neblina e o fumo das lareiras, que não sobe e se mantém quase instantaneamente por cima do teu cabelo, encharcado, abafando toda a fragrância de framboesa, com que o lavaste e isso faz-me recordar a melhor altura do ano, a primavera. 
No percurso que faço até ao local onde pretendo ir, os pensamentos tomam conta de mim, depois dos sentimentos já o terem feito, vezes e vezes sem conta, mas apesar de escrever na primeira pessoa, este eu na verdade não o sou. Um eu, que só posso revelar a mim próprio não vá a escrita trair-me o coração e as palavras fazerem greve de excesso de zelo, começando a escrever tudo o que desejo, mas não quero. 
A passagem para a outra margem , não se dá de barco, nem a nado, muito menos a pé ou de carro, simplesmente não acontece, pois, quer se admita ou não, entre a razão e o coração há um caminho intransitável por onde só as galinhas podem passar, mas as galinhas não sabem que o podem fazer. E eu, nesse meu mundo onde só o sol, tem possibilidade de me acender todos os dias, é a falta de luz que tem aparecido, essa escuridão que me tem lambido as pernas, de tal forma que já não há surpresas que me atirem ao chão. Sei que é uma imagem terrível, um sentimento destrutivo, por vezes dilacerante, esperar sempre e acertar com essa esperança, mas acreditem ou não, apesar de ser uma imagem triste, não deixa de ser uma solidão com muita utilidade.

Foto: Catirolas

1 comentário:

Anónimo disse...

"A passagem para a outra margem , não se dá de barco, nem a nado, muito menos a pé ou de carro, simplesmente não acontece,"
Beijinho Catarina

Publicação em destaque

Outono

Incrível!! Ainda ontem o cair da noite banhava lentamente (a passo de caracol) os nenúfares que boiavam no charco verde de águas cálidas, ...